葡语阅读:你死后想成为什么?
Muitas pessoas conseguem feitos dignos de super-heróis. Elas passam horas embaixo da água, agüentam extremos de temperatura, recebem pancadas sem sentir dor, estão em vários lugares ao mesmo tempo e podem receber injeções de químicos que nos destruiriam em segundos. Esse tipo de gente só tem uma diferença em relação a mim e a você: elas estão mortas.
Não é por causa desse detalhe que eles vão ficar parados. Cadáveres participaram de inúmeros avanços científicos, desde novas técnicas médicas até equipamentos de segurança para carros. Na sua maneira quieta e silenciosa, salvaram milhões de vidas. As possibilidades que nos aguardam quando não pudermos mais nos mover são o tema do livro Stiff ("Rígido", inédito em português), da jornalista americana Mary Roach. A seguir, você verá quais são essas oportunidades. Desculpe-me por lembrar isso, mas um dia estaremos como eles. Temos então a chance de decidir agora como os superpoderes serão usados. Faça sua escolha.
Aula morta
Já pensou em virar peça de museu? Milhares de cadáveres passeiam hoje pela Europa em uma exposição chamada Body Worlds ("Os Mundos do Corpo"). A pele, a cor e detalhes microscópicos deles são quase iguais aos de qualquer pessoa que caminhe pelo museu. É como se fosse um showroom da mais recente técnica de conservação de corpos: a plastinação, que substitui os líquido do corpo por uma resina como o silicone e o mantém intacto por até 10 mil anos. O problema começou quando o criador da técnica, o anatomista alemão Gunther von Hagens, passou a usar os cadáveres preservados para encher museus e gerar polêmica. Além das denúncias de que ele estaria usando corpos sem autorização, ele foi acusado de desrespeitar os mortos e de ter um senso artístico no mínimo duvidoso. Hagens diz que seu objetivo não é fazer deles obras de arte, mas mostrar noções de anatomia às mais de 12 milhões de pessoas que visitaram a exposição. Na opinião dele, não é um uso tão diferente do que milhões de médicos fazem ao utilizar dissecações para ensinar seus alunos.
Poucas áreas da ciência são tão cheias de escândalos quanto o uso de cadáveres para pesquisa ou ensino. As primeiras experiências desse tipo já eram motivo para quebra-pau. Há 2 300 anos, o médico grego Herófilo, considerado o pai da anatomia, descreveu o funcionamento de nervos e de órgãos pela primeira vez baseado em dissecações. O problema é que, além de mortos, as experiências incluíram cerca de 600 criminosos vivos, segundo relatos do historiador Tertuliano (155-222 d.C.), um opositor de Herófilo.
O uso de cadáveres de criminosos para experiências, no entanto, persistiu na Europa até o século 19. Ser submetido pela autópsia era tido como uma penitência pior que a execução, algo que praticamente eliminava as chances de se chegar ao céu. Ficava restrito àqueles que cometiam delitos muitos graves, mas o número de infelizes nessas condições ficava muitas vezes abaixo do que os médicos precisavam. Alguns buscavam uma solução em casa: no século 17, o inglês William Harvey, o descobridor do funcionamento do sistema circulatório humano, fez suas experiências no próprio pai e na irmã. Um século antes, o belga Andrea Vesalius, o anatomista mais famoso de todos os tempos, recomendava que seus alunos estudassem o funcionamento dos tendões até enquanto comiam carne durante o jantar. Existia também um método mais radical: roubar corpos de cemitérios. A prática se tornou tão comum que algumas pessoas chegavam a ser enterradas em túmulos de ferro, com caixões duplos ou triplos, blindados com concreto ou repletos de travas. O auge da polêmica foi em 1828, quando dois ingleses, Burke e Hare, assassinaram pelo menos 15 pessoas para vendê-las a um anatomista.
O controle do uso de cadáveres mudou bastante desde então. As pesquisas obedecem hoje várias normas éticas que, de acordo com o caso, exigem o consentimento prévio da pessoa ou de sua família. Em muitas situações, os cadáveres se tornaram até desnecessários. Eles podem ser substituídos nas aulas por corpos embalsamados ou por softwares com modelos tridimensionais do corpo humano, que podem agilizar o aprendizado. Em várias pesquisas científicas, no entanto, os cadáveres serão sempre necessários.